Crônicas de Luís Fernando Veríssimo

Blog com crônicas de Luís Fernando Veríssimo

05 outubro 2006

Crônica - Nádegas Redolentes

Ela era irresistível quando acordava. Tinha até um cheiro diferente, que desaparecia no resto do dia. Um cheiro morno. Cheiro de leite morno, era isso. Com um inexplicável toque de baunilha. Mas ela acordava de mau humor.
Quente, cheirosa, apetitosa e emburrada. Nem deixava ele beijá-la na boca. “Eu ainda não escovei os dentes!” E se ele tentasse beijar o seu umbigo (nozmoscada, possivelmente canela), ela lhe dava um chute.
Não eram só os cheiros. Ela acordava fisicamente diferente. A cara maravilhosamente inchada, a boca intumescida, como a de certas meninas do Renoir. No resto do dia ia alongando-se, modiglianizando-se, mas de manhã era uma camponesa compacta, com fantásticas olheiras roxas. Ele não sabia explicar. Ela era uma mulher delgada, de pernas compridas, mas de manhã tinha as pernas grossas. E ou ele muito se enganava ou até a bunda ela perdia, de dia. A bunda. As nádegas redolentes. “Mmmmm... Ervas aromáticas. Um quê de sândalo...”
— Pá-ra.
De noite, ela insistia e o emburrado era ele. Ela tomava banho, botava uma camisola transparente e deitava ao lado dele, toda certinha, penteado perfeito. Ele não podia dizer que gostava mesmo era quando ela acordava com a camisola toda torta, com uma alça enroscada nas pernas, nas doces pernocas matinais. Ele ficava lendo, ela ficava esperando. Cheirando a sabonete e esperando. Tentava começar uma brincadeira, cutucando-o com o pé.
Cantarolava no seu ouvido “– Ele já não gosta mais de mim, que pena, que peena..”. Ele continuava lendo até que ela desistisse e dormisse. Ele não queria nada com aquela pessoa que virava as pestanas antes de ir para a cama. Queria era a camponesa da manha. Sonhava com a sua camponesa irritada.
A tese dela era que, antes de escovar os dentes e tomar café, uma pessoa não é uma pessoa, é uma coisa. Pode evoluir para uma pessoa se fizer um esforço, mas é um processo lento e difícil que requer concentração, e exclui qualquer forma de digressão, ainda mais sexual. Comparava o sono a um acidente ao qual a gente sobrevive, mas leva meio dia para se recuperar. E o desejo dele de possuí-la antes de escovar os dentes a uma tara indefensável, quase a uma forma de necrofilia. “Sai, sai!” E levantava-se, tentando encontrar as pontas da camisola, puxando uma alça do meio das pernas com fúria.
Quando chegava à porta do banheiro, já era uma mulher comprida. E ele ficava cheirando o travesseiro ainda quente. Mmmm. Baunilha, decididamente baunilha.
Uma noite, ela disse:
– Eu acho que você tem outra. Acho que você está pensando nela neste momento. Fingindo que lê e pensando nela. Diz que não!
Ele não disse que não. Estava pensando nela, de manhã. A sua outra, a sua inatingível outra, a das pernocas, a da baunilha. Mas ela não precisava se preocupar, pensou. Nunca seria enganada. A outra não queria nada com ele.
– Apaga a luz, apaga.
Ele suspirou, fechou o livro, apagou a luz. Enquanto faziam amor, ele tentava imaginar que ela era a outra. Mas o cheiro de sabonete atrapalhava.

Crônica - Nádegas Redolentes

Ela era irresistível quando acordava. Tinha até um cheiro diferente, que desaparecia no resto do dia. Um cheiro morno. Cheiro de leite morno, era isso. Com um inexplicável toque de baunilha. Mas ela acordava de mau humor.
Quente, cheirosa, apetitosa e emburrada. Nem deixava ele beijá-la na boca. “Eu ainda não escovei os dentes!” E se ele tentasse beijar o seu umbigo (nozmoscada, possivelmente canela), ela lhe dava um chute.
Não eram só os cheiros. Ela acordava fisicamente diferente. A cara maravilhosamente inchada, a boca intumescida, como a de certas meninas do Renoir. No resto do dia ia alongando-se, modiglianizando-se, mas de manhã era uma camponesa compacta, com fantásticas olheiras roxas. Ele não sabia explicar. Ela era uma mulher delgada, de pernas compridas, mas de manhã tinha as pernas grossas. E ou ele muito se enganava ou até a bunda ela perdia, de dia. A bunda. As nádegas redolentes. “Mmmmm... Ervas aromáticas. Um quê de sândalo...”
— Pá-ra.
De noite, ela insistia e o emburrado era ele. Ela tomava banho, botava uma camisola transparente e deitava ao lado dele, toda certinha, penteado perfeito. Ele não podia dizer que gostava mesmo era quando ela acordava com a camisola toda torta, com uma alça enroscada nas pernas, nas doces pernocas matinais. Ele ficava lendo, ela ficava esperando. Cheirando a sabonete e esperando. Tentava começar uma brincadeira, cutucando-o com o pé.
Cantarolava no seu ouvido “– Ele já não gosta mais de mim, que pena, que peena..”. Ele continuava lendo até que ela desistisse e dormisse. Ele não queria nada com aquela pessoa que virava as pestanas antes de ir para a cama. Queria era a camponesa da manha. Sonhava com a sua camponesa irritada.
A tese dela era que, antes de escovar os dentes e tomar café, uma pessoa não é uma pessoa, é uma coisa. Pode evoluir para uma pessoa se fizer um esforço, mas é um processo lento e difícil que requer concentração, e exclui qualquer forma de digressão, ainda mais sexual. Comparava o sono a um acidente ao qual a gente sobrevive, mas leva meio dia para se recuperar. E o desejo dele de possuí-la antes de escovar os dentes a uma tara indefensável, quase a uma forma de necrofilia. “Sai, sai!” E levantava-se, tentando encontrar as pontas da camisola, puxando uma alça do meio das pernas com fúria.
Quando chegava à porta do banheiro, já era uma mulher comprida. E ele ficava cheirando o travesseiro ainda quente. Mmmm. Baunilha, decididamente baunilha.
Uma noite, ela disse:
– Eu acho que você tem outra. Acho que você está pensando nela neste momento. Fingindo que lê e pensando nela. Diz que não!
Ele não disse que não. Estava pensando nela, de manhã. A sua outra, a sua inatingível outra, a das pernocas, a da baunilha. Mas ela não precisava se preocupar, pensou. Nunca seria enganada. A outra não queria nada com ele.
– Apaga a luz, apaga.
Ele suspirou, fechou o livro, apagou a luz. Enquanto faziam amor, ele tentava imaginar que ela era a outra. Mas o cheiro de sabonete atrapalhava.

Crônica - Sexo e Futebol

A dissertação nada-a-ver de hoje é: no que o sexo e o futebol se parecem? No futebol, como no sexo, as pessoas suam ao mesmo tempo, avançam e recuam, quase sempre vão pelo meio mas também caem para um lado ou para o outro e às vezes há um deslocamento. Nos dois é importantíssimo ter jogo de cintura.
No sexo, como no futebol, muitas vezes acontece um cotovelaço no olho sem querer, ou um desentendimento que acaba em expulsão. Aí um vai para o chuveiro mais cedo.
Dizem que a única diferença entre uma festa de amasso e a cobrança de um escanteio é que na grande área não tem música, porque o agarramento é o mesmo, e no escanteio também tem gente que fica quase sem roupa.
Também dizem que uma das diferenças entre o futebol e o sexo é a diferença entre camiseta e camisinha. Mas a camisinha, como a camiseta, também não distingue, ela tanto pode vestir um craque como um medíocre.
No sexo, como no futebol, você amacia no peito, bota no chão, cadencia, e tem que ter uma explicação pronta na saída para o caso de não dar certo.
No futebol, como no sexo, tem gente que se benze antes de entrar e sempre sai ofegante.
No sexo, como no futebol, tem o feijão com arroz, mas também tem o requintado, a firula e o lance de efeito. E, claro, o lençol.
No sexo também tem gente que vai direto no calcanhar.
E tanto no sexo quanto no futebol o som que mais se ouve é aquele “uuu”.No fim, sexo e futebol só são diferentes, mesmo, em duas coisas. No futebol, não pode usar as mãos. E o sexo, graças a Deus, não é organizado pela CBF.