Crônicas de Luís Fernando Veríssimo

Blog com crônicas de Luís Fernando Veríssimo

21 setembro 2006

Crônica - Defenestração

Certas palavras têm o significado errado. “Falácia”, por exem­plo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazôni­ca. A misteriosa Falácia Negra.
“Hermeneuta” deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo se complicaria.
- Os hermeneutas estão chegando!
- Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hermeneutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as ati­vidades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
- Alô...
- O que é que você quer dizer com isso?
“Traquinagem” devia ser uma peça mecânica.
- Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
“Plúmbeo” devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto “defenestração”.
A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu sig­nificado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pes­soas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
- Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.
Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas tal­vez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores pro­fissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que en­cerravam os documentos formais?
"Nestes termos, pede defenestração..."
Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
- Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância, mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
- Les defenestrations. Devem ser proibidas.
- Sim; monsieur le Ministre.
- São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
- Sim, monsieur le Ministre.
- Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível.
Até divertido. Mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notó­rios “defenestreurs”. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persis­ta no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
- É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...
- Hmm. O “impulsus defenestrex” de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar - diz o analista, afastan­do-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenes­tração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial no 172 andar.
- Querida...
- Mmmm?
- Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
- Fala, amor.
- Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para a cama:
- Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
- Fui defenestrado...
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti!

04 setembro 2006

Crônica - Sozinhos

Esta idéia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me arrependi. Mas já estava tida, não adiantava mais. Você, leitor, no entanto, tem uma escolha. Pode parar aqui, e se poupar, ou ler até o fim e provavelmente nunca mais dormir. Vejo que decidiu continuar. Muito bem, vamos em frente. Talvez, posta no papel, a idéia perca um pouco do seu poder de susto. Mas não posso garantir nada. É assim:
Um casal de velhos mora sozinho numa casa. Já criaram os fi­lhos, os netos já estão grandes, só lhes resta implicar um com o outro. Retomam com novo fervor uma discussão antiga. Ela diz que ele ronca quando dorme, ele diz que é mentira.
- Ronca.
- Não ronco.
- Ele diz que não ronca - comenta ela, impaciente, como se falasse com uma terceira pessoa.
Mas não existe outra pessoa na casa. Os filhos raramente visi­tam. Os netos, nunca. A empregada vem de manhã, faz o almoço, deixa o jantar e sai cedo. Ficam os dois sozinhos.
- Eu devia gravar os seus roncos, pra você se convencer - diz ela. E em seguida tem a idéia infeliz. - É o que eu vou fazer! Esta noite, quando você dormir, vou ligar o gravador e gravar os seus roncos.
- Humrfm - diz o velho.
Você, leitor, já deve estar sentindo o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu não posso parar de escrever. As idéias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos custem amigos, a vida ou o sono. Imagi­ne se Shakespeare tivesse se horrorizado com suas próprias idéias e dei­xado de escrevê-las, por puro comedimento. Não que eu queira me com­parar a Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro. Tenho que exercer este ofício, esta danação. Você, no entanto, não é obrigado a me acom­panhar, leitor. Vá passear, vá tomar um sol. Uma das maneiras de con­trolar a demência solta no mundo é deixar os escritores falando sozi­nhos, exercendo sozinhos a sua profissão malsã, o seu vício solitário. Você ainda está lendo. Você é pior do que eu, leitor. Você tinha escolha.
Sozinhos. Os velhos sozinhos na casa. Os dois vão para a cama. Quando o velho dorme, a velha liga o gravador. Mas m poucos minu­tos a velha também dorme. O gravador fica ligado, gravando. Pouco depois a fita acaba.
Na manhã seguinte, certa do seu triunfo, a velha roda a fita.
Ouvem-se alguns minutos de silêncio. Depois, alguém roncando.
- Rarrá! - diz a velha, feliz.
Pouco depois ouve-se o ronco de outra pessoa, a velha também ronca!
- Rarrá! - diz o velho, vingativo.
E em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro. Uma voz sussurrando, leitor. Uma voz indefinida. Pode ser de homem, de mulher ou de criança. A princípio - por causa dos roncos - não se distingue o que ela diz. Mas aos poucos as palavras vão ficando claras. São duas vozes. É um diálogo sussurrado.
“Estão prontos?”
“Não, acho que ainda não...”
“Então vamos voltar amanhã...”